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Mariene de Castro



 

Mariene de Castro fala sobre sua homenagem a Clara Nunes

 

Caso não tivesse partido tão cedo, Clara Nunes teria

completado 70 anos de vida em 12 de agosto de 2012. A data

foi celebrada com o relançamento da biografia escrita por


Vagner Fernandes e uma série no Canal Brasil. Houve

também a promessa (não cumprida) do lançamento de

registros inéditos e o relançamento da sua discografia. o ano

acabou e muito pouco se fez para relembrar uma artista

daquele tamanho.


 

Apesar da baixa estatura,Clara Nunes era uma gigante nos

palcos. Dona de uma beleza (em vários sentidos)

estonteante, ela dançava jogando missangas, adereços,

braços e babados de um lado para o outro, hipnotizando seu

público. Com essa ginga, ela aproximou Rio de Janeiro,

Bahia e Minas Gerais, transformando tudo, praticamente,

numa coisa só.


Boa parte dessa força da Mineira Guerreira era desconhecida

pela cantoraMariene de Castro. Nome promissor da música

brasileira, apesar dos 15 anos de carreira, ela descobriu 

Clara, de verdade, há poucos anos, mas logo se viu envolvida

na sua história. Da identificação, nasceu uma aproximação e

um tributo que agora chega às lojas em CD, DVD e formato

digital. Parceria da Universal Music com o Canal Brasil, Ser

de Luz traz 16 grandes sucessos de Clara Nunes na voz

emocionada de Mariene.


“Quem são as duas mulheres que você lembra quando se

fala em Bahia? (…) É a Carmen Miranda e a Clara Nunes. E,

curiosamente, nenhuma das duas era baiana”, comenta a

cantora em entrevista por telefone. Mariene conta que, há

algum tempo, vem trilhando a obra de Clara e descobrindo

pontos em comum com a própria vida. Pontos, estes, que ela

comenta a seguir.


DISCOGRAFIA – Como nasceu esse projeto?


Mariene – Foi um convite que recebeu do Canal Brasil, junto

com o Vagner Fernandes, biógrafo da Clara. Aceitei e acho

que é um projeto que homenageia uma grande artista. Uma

artista que se tornou uma saudade, que cantou muito a Bahia

e o Nordeste. Trouxe nesse momento que ela completaria 70

de vida e 30 anos de morte. Um momento de lembrar o

quanto ela foi importante para o Brasil. Imagine ela falar em

Jeje e Nagô num tempo em que havia muita intolerância

religiosa.

 

DISCOGRAFIA – E quando você se aproximou da vida da

Clara?


Mariene – Desde que li o livro (Guerreira da utopia), há uns

quatro anos, fiquei muito impressionada com o desejo dela

de ser mãe, de falar num discurso afrodescendente, que

falava muito em fé e orixás. E ela está muito viva na memória

do povo. Antes, eu já cantava “Conto de areia” e “Ijexá”, não

mais que isso. Primeiramente, há pouco mais de um ano, fui

convidada para cantar um outro projeto cantando Clara, mas

ainda nada a ver com esse DVD. Ali já senti que algo de

muito forte estava por vir. Logo em seguida conheci a canção

“Um ser de luz” através de Beth (Carvalho). Depois o Diogo

(Nogueira) me chamou pra cantar essa música no

Sambabook (do João Nogueira).


DISCOGRAFIA – Então já tinha um tempo que a Clara Nunes

te perseguia?

Mariene – Não é perseguição. Tenho na minha vida uma

missão de falar para uma nova geração quem foi essa

mulher. Isso acaba causando uma aproximação. Isso tudo

precisava acontecer e aconteceu. Nesse tempo, conheci o

Alceu Maia, que tocou com ela e trabalhou no meu DVD, e as

pastoras da Portela. Esse ano desfilei pela Portela

homenageando a Clara. Quando recebi o convite, estava em

Minas, coincidentemente, gravando um filme.


DISCOGRAFIA – Como foi a escolha do repertório?

Mariene – É um repertório familiar. A minha missão, e do

artista, é de doar a minha voz a essa obra e estar mais perto

desse universo que me apresentou pra tanta gente

importante. Foi tudo escolhido coletivamente. Um trabalho em

família. Todos participaram de uma forma muito presente.

 

DISCOGRAFIA – Além da música, a Clara Nunes tinha

alguns elementos que eram muito importantes, como o

cabelo crespo, as roupas. Que Clara você queria mostrar

nesse show?


Mariene – Não há nada que não seja meu naturalmente, da

minha essência. Eu sou uma negra de cabelo crespo, adepta

do candomblé. Quem me conhece, isso sempre esteve

presente na minha vida. Não apenas por conta de Clara.

Clara mostra isso a partir do momento em que ela canta a

Bahia. Quando o Adelzon, o produtor, criou todo esse

universo novo pra ela. Quem são as duas mulheres que você

lembra quando se fala em Bahia?

DISCOGRAFIA – Hoje, são muitos nomes.


Mariene – Mas é a Carmen Miranda e a Clara Nunes. A figura

de Clara, e da Carmen, eram muito pra Bahia. E,

curiosamente, nenhuma das duas era baiana. Esse trabalho

vem muito forte o meu olhar sobre Clara. É o momento de

Clara ensolarado, a partir do momento em que isso chega pra

ela (o encontro com a Bahia). Acho que ninguém se mostrou

tão baiana como ela e Carmen. Clara trouxe essa

religiosidade, da filha de Ogun com Iansã. Isso marcou uma

população que era órfã. É como se ela tivesse assinado uma

libertação. É tão de hoje essa intolerância, imagine há 30

anos. Não é à toa aquela comoção do enterro dela. Fiquei

impressionada com as fotos.


DISCOGRAFIA – Você também se vê nesse papel de falar

desses assuntos de religiosidade, de uma cultura que ainda

sofre preconceito?


Mariene – Como isso vem com muita verdade, na minha vida

e no meu universo, isso vem naturalmente. Vem de onde eu

venho, do meu dia a dia. Eu sou desse povo e por isso eu

entendo tão bem. Eu entendo essa carência. Cadê o nosso

pai e a nossa mãe dentro da nossa cultura, das nossas

raízes? O que é ensinado pra gente é muito diferente do que

a gente sente. O samba de roda sempre foi tido como um

produto de quinta. Por isso o (projeto) Santo de casa. Foi o

momento do canto popular ser visto. Isso tudo é uma história

que, se não for contada, vai ser esquecido.


DISCOGRAFIA – Você faz uma homenagem luxuosa para

alguém que tirava repertório do morro, de compositores que

morreram pobres. Você também costuma vasculhar em busca

de um repertório que fica à margem da indústria?

Mariene – Essa é a história que acontece na Bahia até hoje.

Todos os sambistas estão morrendo no anonimato. Hoje,

graças a Deus, a gente tem um leque de artistas que gravam

o Roque Ferreira. Dessa maneira, a gente ouve a Bahia

fazendo samba. Desde meu primeiro disco, isso ta muito

presente. Gravei muita música de domínio público. É onde

surge a tabaroinha. Quem já me acompanha sabe quais os

caminhos que eu percorri. Por isso eu me encontro em

muitas músicas da Clara. Quando eu mostrei a música “Um

ser de luz” pro meu diretor musical e disse lê essa letra, ele

perguntou “fizeram pra você?”.


DISCOGRAFIA – O que os anos de Timbalada te ensinaram?

Mariene – Eu tive, especialmente, mais contato com o

Carlinhos Brown. Cantei com ele uns dois anos. Com a

Timbalada foi um período curto. O que eu trago ainda hoje é

o contato direto com o povo, o encontro com a massa.


DISCOGRAFIA – Mesmo que tenha tido muito sucesso logo

no segundo disco, Clara Nunes demorou até se encontrar

artisticamente. Você também teve dificuldades para encontrar

seu caminho?

Mariene – De verdade, não. Desde pequeninha eu tenho

esse perfil. Desde minha atitude de menina, de querer

trabalhar, sempre tive um pensamento muito atento a tudo.

Quando fui convidada para ir pra França, eu tinha uma coisa

de como o Brasil é visto lá fora. Por isso, eu fui de longo.

“Vou mostrar que o Brasil tem elegância”. Desde então eu

represento minha cidade com muita dignidade. Isso sempre

esteve no meu discurso, na minha postura. Eu não canto

canções. Eu tenho discurso.


DISCOGRAFIA – Você já foi comparada a Edith Piaf e agora

deve ser comparada a Clara Nunes. O que você mais admira

nessas duas mulheres?

Mariene – Na época que eu fui comparada à Piaf, eu

conhecia uma coisa ou outra dela. Mas eu entendi a

comparação por que eu era muito emotiva. Eu não falava

uma palavra em francês e cantava em português. Mas as

pessoas se emocionavam. Se a partir de então me surgirem

mais comparações, estou acostumada. Já a Clara, se fosse 

há 15 anos, eu diria “quem é a Clara?”. Por que só fui ter

contato agora.


DISCOGRAFIA – O que mais você destaca nesse seu novo

trabalho?

Mariene – Foi muito importante ter os tambores do Gantois

comigo. Lembrar também a Mãe Menininha, que é outra

mulher muito forte que deixou uma lição muito importante.

trazer meus músicos baianos para o Rio de Janeiro, onde

eles passaram um mês comigo, criando, arranjando. Quem

ver esse DVD vai ver uma diferença do que é o samba da

Bahia.

 

 

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